segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Novembro

O café de Edward Hopper - Zack Thurmond



Novembro

Novembro nos alcançou
com os dedos longos
e os seus ares de fim.

Chegou para lembrar que passamos,
que amanhã seremos
como a poeira de Outubro
que assenta sobre os retratos.

Chegou para dar pressa ao futuro,
rarear os cabelos,
enfraquecer os ossos,
deixar vulnerável o coração.

Novembro chegou para ressignificar
o tempo,
refazer os laços,
destruir qualquer vestígio de ego.

Chegou para que possamos
pedir desculpas,
alargar as distâncias,
nos derramar em solidão.

Este Novembro intruso,
que não se importa com as cascas,
abre a porta do porão
e nos mostra o destino:

uma fração das peças velhas,
algumas velas queimadas
e um perfume que enfraquece;
mais uma centelha que se apaga.

(Fabrício de Queiroz)

quarta-feira, 22 de julho de 2015

Inanimado

Gangrena do braço amputado no hospital - Eduard Stauch


Paradoxalmente, educadas e educados ao sofrimento e ao sorriso.



Inanimado

Conheci a angústia
muito cedo
antes de virar gente
tornar-me oco.

Pintei o horizonte
de lonjuras
e me vi de pernas
atadas, cabeça feita;

mordaça pronta de couro
atando lágrimas
chamando de pouco
o que era nada;

chamando de tudo
o que era absurdo
chamando de vida
o que era túmulo;

chamando de idade
o que era juventude
chamando de saudade
o que era somente parte.

Chorei ao nascer
e não parei
com essa perversão raquítica
que põe a alma em eterno sertão;

que seca em calçadas amoniacais
que disseca
o oco que era carne
a carne que é gente.

(Fabrício de Queiroz)

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Hoje eu não quero sorrir

Manhã - Nikolai Pozdneev


Esse é um poema violento.



Hoje eu não quero sorrir

Deixem-me confortável em minha solidão,
não tentem apagar minha expressão vazia
ou maldizer meus amigos que não consolam,
ou não me chamam para sair
tomar uma cerveja, expor-se:
viver.

Não discriminem sequer a minha tristeza
que me aplaca o espírito,
enquanto digo a todos que estou bem
e feliz.

Deixem que eu fuja por alguns instantes
da ditadura revolucionária da felicidade,
escreva um poema triste
e me permitam chorar de dor,
de verdadeira dor

E não me digam "se cure",
ou que "isso vai passar"
- Porque não vai.
Não me digam para sorrir
porque é isso que vai lhe agradar;

[ou que é melhor que eu compartilhe tristeza
do que as minhas alegrias]

porque viver é sentir dor,
elogiar as cicatrizes
e cuidar das chagas.
É antes de tudo uma batalha infinda
que não nos deixa tomar fôlego,

que cobra cotidianamente,
que esmaga com ferocidade
e pilha, e destrói, e sufoca
E ainda assim cobra um sorriso.

Foda-se.
Hoje eu não quero sorrir.

(Fabrício de Queiroz)

sexta-feira, 17 de abril de 2015

À nossa saudade

Mar de sentimentos - Leonid Afremov



À nossa saudade

A nossa saudade transgride os poros,
exaura na perversão da distância
seus odores ainda de ontem,
atinge olhos desacostumados com a ausência.

Calada está a manhã de Terça,
que passa vagarosa na imensidão.
Meus lençóis contam a sua história
e o tempo, eu juro, dilatou-se.

A nossa saudade rompe a carne,
agride o tempo e faz curvar a poesia,
que assiste quieta a memória dos corpos,
que versa triste nossa ansiedade,

que não soube se contentar com o desejo
e derramou-se nesta folha:
sem o teu cheiro,
sem o teu sorriso.

(Fabrício de Queiroz)

quinta-feira, 12 de março de 2015

Reação

A jovem brigada Szybkościowcy - Helena Krajewska


Não há símbolo ou bomba que nos pare.



Reação

As bombas estão de braços abertos à nossa marcha,
os gases procuram amordaçar nosso grito,
a pancada sobe e desce pela farda suja de sangue;
de joelhos imploramos a misericórdia,

que não há - é em vão.

Devemos revidar, em violência e de forma organizada;
rasgar as fardas,
tomar as bombas,
erguer-se do chão.

(Fabrício de Queiroz)

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Não

Trabalhadores a caminho de casa - Edvard Munch


85 pessoas detêm 46% da riqueza mundial. Neste momento estão em seus iates, ilhas, jatinhos... Ou seja lá o que caralho façam com o fruto da exploração.



Não

Não é esta rotina que desejo.
Não é esta bota vencida,
desbotada e surrada pelo asfalto
que me faz homem - não.

Não é a longa jornada de labuta
que me dignifica, nem este dinheiro
pouco que pego todo final de mês
e consumo para a subsitência.

O que quero é caminhar lá fora de chinelo,
deixar de receber os farelos da exploração,
dizer não aos que vão à praia na Segunda
e brincar com meus filhos na calçada.

Quero pegar a estrada em um mundo comum
- não de poucos - sem pedágios
ou expressões pesadas a me encarar,
sem destino, sem cercados.

(Fabrício de Queiroz)