terça-feira, 27 de outubro de 2009

Paredes

Costurando notas - Juarez Machado


Tem vezes que as lembranças resolvem aparecer em momentos estranhos, quando, por exemplo, se estuda algo com uma garrafa de café já vazia num quarto mal iluminado.

E como é estranho o mecanismo das lembranças! Podemos passar por algo tido com superficial e aquele momento ficar marcado (de modo físico e emocional) perfeitamente na memória.

Lembrei de quando era criança e percebi que já era hora (novamente) da mãe do cunhado de minha mãe (vejam só!) tomar o seu remédio, ela havia vindo do interior para Salvador e estava fazendo uns exames e eu que "tomava conta dela durante o dia". Ela falava pouco e, naquele momento, lembro do seu olhar lânguido de velhice, os olhos distantes e imensamente empaturrados de sabedoria.

Daquele dia em diante, achei a velhice muito bonita, principalmente o modo como eles (os velhos) parecem tratar a passagem do tempo de modo diferente. Nunca esqueci a minha posição na sala, a roupa que os dois usavam no dia, o arranjo dos móveis e a sensação que aqueles olhos deixaram em mim.



Paredes

"O que são as lembranças senão o idioma dos sentimentos?"
(Júlio Cortázar)


Pia no canto do quarto um rádio empoeirado,
a maresia, convidada pela janela aberta,
passeia livre pelos objetos usados.

A parede, sebosa e caduca, não se recorda do branco;
o brilho faz parte da memória da madeira
e a cadeira já não serve para sentar.

Um último pio do vento e pronto, arma-se a lembrança:
risos de criança que giram num carrossel envelhecido,
ciranda de velhos que rezam em redor do epitáfio.


_Fabrício de Queiroz Venâncio