quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Entreato

Sem título - Montez Magno



Entreato

Os bodes secos expostos ao Sol,
pastam na grama amarela
- entre a aurora e o crepúsculo.

Prematuro até mesmo para andar,
diminuto, o filhote alimenta a família
- entre a vida e a morte.

O poço só pode ser vigiado,
água é saudade parceira da fome;
- entre o barro e o cansaço,

esperança feito areia entre dedos.


_Fabrício de Queiroz Venâncio

domingo, 3 de outubro de 2010

O rosto (ou a Balada sem ritmo algum)

Natureza Morta com Absinto - Vicent Van Gogh


A velhice é muito bonita. Para os velhos parece que o tempo passa diferente, ficando essa sensação impressa no modo calmo como se movem, como falam e se organizam dentro do seu tempo.

Pode ser também que já estejam no aguardo da morte, praticando serenamente a única coisa que lhes resta: as lembranças e os amigos.



O rosto (ou a Balada sem ritmo algum)

A poeira dos carros encharca as
rugas virgens do rosto,
um olhar lânguido de miopia e carne
atenta na paisagem a sua morte.

Tudo lhe parece sinônimo de si:
a palha seca, a sopa podre
e a gia suada emborcada.

Na cidade o povo canta,
os carros passam e ninguém sorri;
numa ausência que se mistura à poeira
que levanta e mela o rosto.

Tudo já lhe é passado:
os jovens, os velhos
e este calafrio que arrepia a nuca.


_Fabrício de Queiroz Venâncio

domingo, 15 de agosto de 2010

O delir

A queda de Faetonte - Johann Liss


Quando já não consigo escutar o som através da parede, recordo com remorso.



O delir

Joga de volta estas flores que te dei:
vindas de tua mão se desmanchará,
terá seu sumo extraído
e chegará a mim como perfume.

Devolve aquele colar vindo do mar,
pois é o seu artesão capaz de engoli-lo,
para se desmanchar novamente em areia
e fazer cemitério de novos corais.

Daquele bombom e daquele transpiro de sexo,
faz um emplasto em molde de concha
e torna a ver o milagre da fruta,
adocicando o desejo de outros.

Tuas lágrimas deixa cair que eu recolho:
guardarei num pote âmbar
para eternizar essa penitência salina
e louvá-las em arrependimento,

mas posso também derreá-las no deserto,
para vê-lo então verde e florido:
semearia no vertigo estas flores
e lhe faria brilhar nova coroa.


_Fabrício de Queiroz Venâncio

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Estalo

Moça Sentada Vista Por Trás - Salvador Dalí


Uma respiração, do outro lado de um muro, nos faz sonhar.



Estalo

Não me apaixono pelas formas,
teores, sabores ou aromas, enfim;
temperamentos passam longe da primeira vista
e tudo que soe longe de sentidos escapam a atração.

Minha sedução está distante de impactos,
o sensorial perde vez ao amaranto,
à sensação de mistério que perturba ao arrepio
e indaga ao silêncio de uma presença.

A percepção se perde e declina,
o destino é varrido por um estalo,
um comichão perpassa aos cabelos da nuca
e a paisagem perde cor, deixa de existir.

Pelo que me apaixono?
Se me perguntam digo que foi
por um olhar, um sorriso;
se me pergunto sou sincero:
digo que não sei.


_Fabrício de Queiroz Venâncio

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Carniça

Frio - Remedios Varo


Quando nos faltar os dentes usaremos as gengivas... Mas, já será tarde demais: não nos preparamos para a época das gengivas.



Carniça

"Nós somos os homens ocos,
os homens empalhados."
(T.S.Eliot)



Na carcaça há o festim do abutre;
no asfalto descansa o solo quente,
cozinhando a carne aos urubus no alto
numa famigerada mostra de educação.

Resta o osso e o oco, então,
onde antes havia carne.
Em finita viagem partem os carniceiros
a procura de novo corpo cozido;

até que lhes falte o cadáver.


_Fabrício de Queiroz Venâncio

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Zumbido

O Pesadelo - John Henry Fuseli



Zumbido

Escrevia

Procurava um sentido em meio
a tantos sentimentos;
Lançava à folha idéias tortas
em códigos,
Para depois desvendá-los...
E veio o zumbido.

Primeiro as idéias fugiram,
Os sentimentos se foram,
Só restou o zumbido.
Procurei aflito pelos cantos
– Mas que zumbido é esse,
que me desconcentra,
me faz amassar o papel,
que causa esse espanto?

Removi a poltrona do lugar,
A TV da estante,
A estante do chão,
O chão foi varrido
(Para ver se encontrava o verme camuflado)
Passado e enxugado.
Ainda assim, ouvia-se o zumbido.

A verdade é que não sabia do que se tratava:
Se era rato ou mosquito,
Garoto ou grunhido,
Se era chiado ou interferência.

Apossei-me do costume
de tudo como verme adjetivar,
De verme lhe classificava,
(praguejava no escuro)
Amaldiçoava o zumbido de nenhum lugar.
Ainda assim persistia, irritava.

Fui para a sala, voltei ao quarto;
Para a cozinha, para a sala...
Suava.
Coloquei som no alto
Cantei como louco, gaiteava
E já até chorava,
Pois o zumbido não sumia.

– Oh! Maldito zumbido de nenhum lugar,
Escuta as minhas súplicas,
Não abra mais as feridas
(já quase supuradas);
Levante de onde estiveres:
Não percebes que já me faz sofrer
tão suficiente quanto os anos?

(Será este zumbido um apelo da consciência?
Um paradoxo à eficiência dos sentimentos?
Uma resposta às idéias tortas?)

Então, num surto, decidi:
– Se é para viver com este zumbido,
se é para na intranqüilidade caminhar,
então levo a vida:
apago o zumbido.

De arma apontada,
Contra a vida tentei...
De olhos abertos me vi:
A página deitada sobre o colo,
A caneta caída pelo chão.

– Será que foi sonho ou zumbido?
ou será que não aconteceu?

_Fabrício de Queiroz Venâncio

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

A Saga do Bobo

A Banheira - Edgar Degas


Alguém já percebeu que nos assutamos mais, por exemplo, com um casamento gay do que com a existência de um mendigo?



A Saga do Bobo

I
Na beira do mato está o bobo;
expulso do palácio,
vive a mendigar.

II
Seduziram o bobo com artimanhas;
na armadilha, morreu o infeliz,
durou a noite.

III
Cortando mato repararam num corpo;
no túmulo do bobo morto,
erigiriam um edifício.


_Fabrício de Queiroz Venâncio

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Soneto da deliberação

Solve et Coagula - Dino Valls



Soneto da deliberação

Dormia enquanto o primeiro feixe amarelo lhe batia ao seio
a manhã escorregava no horizonte encantada em violeta
no arfar das oscilações em seus montes desenhava-se uma linha estreita
onde o tato voraz ansiava pelos virgens freios.

No topo de seus picos pingava a saliva sedenta
em seus vales escorria um suor que não chegava a desaguar
na pele quente dedos tamborilavam numa sinfonia em fá
olhos gulosos desejavam uma floresta argêntea.

Então o desbravador das serras pôs de lado o medo
como cargueiro que se presta ao atraque, observou o seu porto
agora, a infinitude do mar de vontades lhe era pouco.

O pecado adentrou nos campos do desejo
a vertigem tomou conta, vagarosamente, do corpo
e a carne estremeceu na pontualidade de um gozo.


_Fabrício de Queiroz Venâncio