terça-feira, 13 de novembro de 2012

Digestão

O quarto - Vicent Van Gogh


Em cada canto uma fotografia antiga. Sobre a mesa, um vinho chamado ausência.

Chá mate entrecortado por restos de cravinho, para as noites de calor.

E Fleetwood Mac para o coração.



Digestão

A família lhe trocou por um brinquedo novo.
Os amigos de trabalho olham estranho.
Faz tempo que o gozo não frequenta sua cama
e as putas não lhe aguentam mais.

Os colegas de magistério puseram uma pedra em si;
de propósito, você perdeu todas as fotos.
Vive a se gabar de um ócio preguiçoso
enquanto a comida apodrece na geladeira.

Os professores da faculdade lhe esqueceram;
os vizinhos resolveram não se importar.
No meio das roupas empilhadas o telefone é uma agulha
e as amantes não te ligam mais.

De repente você é um objeto do quarto.
Passeia livre pela mobília e se pergunta:
por que lhe trocaram por um tanto de areia?
Por que lhe resumiram a um punhado de pó?

_Fabrício de Queiroz Venâncio

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Fadiga

Os mentirosos - João Luiz Costa


O meu descanso aguarda o seu consenso.




Fadiga

Eu me cansei das manhãs,
do hálito de cerveja,
dos seios passageiros
e dos seixos em minha janela.

Cansei do sexo fácil,
das noites frias,
do olhar incômodo dos vizinhos
e da porta aberta.

Eu me cansei de tudo,
das navalhas,
das narinas,
dos vestidos rosas
e dos ambientes coloridos:
dos sorrisos fáceis.

Eu me cansei do vazio,
do cheio,
dos aromas e odores,
das brisas e furacões
e da saudade passageira.

Cansei do inusitado,
das armadilhas,
do fogo
e do esperado:
das mentiras.

Cansei do amor
e lhe fiz um bolo de cansaço.
Servi uma taça de fadiga
e brindei à fraqueza,
ao marasmo.

_Fabrício de Queiroz Venâncio

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Prontidão


Retrato de Jeanne Hébuterne - Amadeo Modigliani


Quatro anos de blog.

Quatro anos de solidão e rompimentos, flores cheias e folhas secas: esmaguei todas sem me dar conta das estações.




Prontidão

Entre nós o que ficou foi o silêncio,
abafado pelas horas de gozo.

Ficou um deserto de prazeres apagados
e coitos vencidos pelo cochilo.

Entre nós o que restou foi uma piedade faminta,
devora-se e nos confunde com esse amor.

Restou a ausência recíproca das manhãs
e uma longa vigília de ingratidão e choro.


_Fabrício de Queiroz Venâncio

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Fotografia

A sedutora - Jack Vettriano


Prometo: vou acordar cedo para guardar em minha memória as fotos de sua despedida.



Fotografia

Antes de partir não esqueça
os meus cheiros e as torradas.
Deixe aquela garrafa vermelha
para que afogue a sua memória.

Antes de partir limpe o chão
com os nossos vômitos de ontem.
Separe alguns lençóis finos
e cubra a minha nudez preguiçosa.

Antes partir abra a janela
e deixe uma foto sobre a cama.
Em papel perfumado com o seu nome
escreva um recado ao meu dia.

Antes de partir, meu amor,
volta cerrar as cortinas.
Deixe sobre a mesa um cesto de beijos
e um adeus, que vou alimentar com poesia.


_Fabrício de Queiroz Venâncio

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Fragmentos

O homem do chapéu-coco - René Magritte


Costumo ter os sonhos roubados antes de acordar. Há um monstro devorador de sonhos que vive no deserto. Escondo os poucos que recordo numa caixa de fosforo, dentro da segunda gaveta do armário.

Com cuidado, visito-os com a porta fechada e música ambiente.

Alguém disse que os sonhos têm significado. Pois bem, os meus significam cálcio e digestão.



Fragmentos

Mandei recolher minha matilha.
Farejavam um aroma-jasmim perdido.
Àquela estrela cadente sussurrei seu nome;
acordei nu e de memória apagada.

Coloquei o fumo e o álcool de lado.
Não há sonhos sob o céu sem estrelas.
Dos seus lábios restou uma saudade castanha,
perdida entre travesseiros molhados e espuma quente.

[Dos seus lábios não restou o sorriso:
fotografia absoluta da memória entorpecida.]

O mármore castiga o salão vazio - memória.
Desforro o mel original para o triunfo da crisálida.
Rezo aos deuses omissos da solidão
uma prece tímida de desejo e carne.

Rezo desconfortável enquanto olham da esquina.
A oração é absorvida pela fuligem e pelo asfalto.
A comunhão é interrompida pelo sono,
que chega baixinho enquanto te apunhalo pelas costas.


_Fabrício de Queiroz Venâncio

terça-feira, 10 de abril de 2012

Olhos castanhos

A cama - Toulouse-Lautrec


O passado se conectou ao presente e eu tive que escrever.



Olhos castanhos

Para V.Y.


"When you look at me with those brown eyes
What do you want to say"

(Brown eyes - Fleetwood Mac)

Olhou-me de um jeito que somente as flores conseguem
quando tem um acesso à devassidão.
Então era Outubro e aquele mês nunca passou.

No canto azul do meu quarto eu cochilava,
talvez sonhasse com o teu semblante de carnaval
ou já praguejasse a luz do dia.

Talvez eu sonhasse com o seu corpo nu,
usasse a memória muscular para decorar suas curvas
e tatuar o seu corpo junto ao meu.

Como orvalho, pela manhã você foi embora
e me dedicou um adeus castanho,
que usei para colorir o cinza do meu quarto.


_Fabrício de Queiroz Venâncio

domingo, 11 de março de 2012

Capitalismo

Capitalismo - Autor desconhecido


... não é uma coisa. É uma relação criada pelos homens e mulheres.

Não é o fim, é uma etapa.



Capitalismo

Faz tempo que mastiguei as vísceras da piedade.
Dizem que não tenho idade, que a história acabou em mim.
Vendi a sua escola, a sua água, as borboletas.
A minha fome não tem fim nem sobrenome
e as minhas ideias contaminam a sua época.

Faz tempo que sou um embargo à evolução.
Meu alimento não é o seu pão, centeio ou trigo.
Não me regozijo com sua paz ou vitória,
vendo armas aos derrotados - sou vencedor
e me alimento de suas tripas e músculos.

Ainda ontem uma pedra me atingiu: esforço inútil.
Com minha força engulo o atirador solitário,
abafo seu grito com o passar da história.
Eu faço as suas memórias ao que me convém,
estou nas ciências e nos programas de televisão.

Ainda ontem um grupo se uniu contra mim:
contra várias pedras eu já tenho medo.
Plantei uma árvore de carniça e não vi as suas flores,
tenho medo quando dizem não, enquanto for possível
vou cortando os seus talos com a minha foice.

Enquanto for possível vou abafando seus gritos,
sustentando-me em exploração e pré conceitos,
digerindo as crianças em meu caldo de competição,
descartando os mais velhos, enfeitando contradições.
Até quando, em uníssono, todas as flores irão grigar:
"Revolução"!


_Fabrício de Queiroz Venâncio

sábado, 7 de janeiro de 2012

Corrida

Sapatos - Vicent Van Gogh


Na TV passava um filme que queria assistir fazia tempo, o Forrest Gump. Estava na cena em que ele é deixado pela Jenny e começa a correr. Desliguei a TV logo quando ele decide parar e voltar para a casa, queria assistir aquele filme completo.

Hoje assisti Forrest Gump e me dei conta que se passaram onze anos desde aquele dia que desliguei a TV. Entendi porque ele começou a correr e porque parou. Chorei em algumas cenas. Onze anos atrás, não teria chorado.



Corrida

Ainda corro e o asfalto é quente;
maçãs maduras, deserto fino.
Esta noite a chuva é caprichosa
e me deixa um aperto no coração.

Esta noite não vai passar enquanto for silêncio,
enquanto continuar vivendo for um frio gostoso
vindo do mar - mensageiro de olhos castanhos.

Castanhos também são os seus olhos,
e os meus - cruzando-se pela madrugada,
enfrentando-se sobre lençóis com o odor
das uvas que roubei de terras vizinhas.

Por trás de máscaras amarelas de carnaval
nos encaramos - corra, não deixe eu te pegar:
meu abraço é perigoso demais para os teus ossinhos.

Ainda corro sobre azulejos cinzentos
e meus pés estão machucados.
Queria mesmo que fosse vôo
alçado em terras castanhas,

ou que você viesse na longa espera da madrugada.

Um cheiro de cravo traz esperança,
o mesmo vento de ondas a retira.
Queria mesmo correr até morrer,
mas o mar está no caminho.


_Fabrício de Queiroz Venâncio