quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Formigas no teto

Imagem ambivalente - Salvador Dalí


Essa imagem me tocou profundamente, tanto que consegui terminar esse poema que já estava há tempos na gaveta.

Acho que demorei de dar um "pronto" neste porque sabia que iria gostar do resultado. Saiu de um pensamento recuperado numa distração, vejam, é muito importante conseguir "capturar" idéias que somente nos acontecem quando nos distraímos, quando estamos de "saco de cheio"... No meu caso, parece que a capacidade de fazer relações se amplia.

Bem, mas coisas felizes as vezes não saem de uma distração diante da tristeza.



Formigas no teto

Faz pouco sentido enquanto espero
a música ainda toca triste, baixo
os amigos estão na sala, sorrindo
estamos indo em silêncio
e nosso choro não pode ser escutado.

Enlouquecemos mas somos ignorantes,
no nosso jogo só existem dois.
No formigueiro brincamos de ciranda,
chamamos de belo o perigoso
de desejo o que é costume.

Pensamos e sorrimos ao mundo,
Somos sebosos e é suja nossa fé,
nosso respiro é gorduroso:
só no cochilo há o alívio,
só na parede a distração.

Não somos mais que este quarto,
Este odor de cigarro abafado,
esta porta de ferro fechada:
Sua ferrugem é o nosso carisma
e nossa canção está no teto.

As formigas caminham,
concentram a nossa atenção.
A tela se apaga pelo desuso,
o banho quente cessa.
E o silêncio, lentamente, nos sufoca.


_Fabrício de Queiroz Venâncio

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Paredes

Costurando notas - Juarez Machado


Tem vezes que as lembranças resolvem aparecer em momentos estranhos, quando, por exemplo, se estuda algo com uma garrafa de café já vazia num quarto mal iluminado.

E como é estranho o mecanismo das lembranças! Podemos passar por algo tido com superficial e aquele momento ficar marcado (de modo físico e emocional) perfeitamente na memória.

Lembrei de quando era criança e percebi que já era hora (novamente) da mãe do cunhado de minha mãe (vejam só!) tomar o seu remédio, ela havia vindo do interior para Salvador e estava fazendo uns exames e eu que "tomava conta dela durante o dia". Ela falava pouco e, naquele momento, lembro do seu olhar lânguido de velhice, os olhos distantes e imensamente empaturrados de sabedoria.

Daquele dia em diante, achei a velhice muito bonita, principalmente o modo como eles (os velhos) parecem tratar a passagem do tempo de modo diferente. Nunca esqueci a minha posição na sala, a roupa que os dois usavam no dia, o arranjo dos móveis e a sensação que aqueles olhos deixaram em mim.



Paredes

"O que são as lembranças senão o idioma dos sentimentos?"
(Júlio Cortázar)


Pia no canto do quarto um rádio empoeirado,
a maresia, convidada pela janela aberta,
passeia livre pelos objetos usados.

A parede, sebosa e caduca, não se recorda do branco;
o brilho faz parte da memória da madeira
e a cadeira já não serve para sentar.

Um último pio do vento e pronto, arma-se a lembrança:
risos de criança que giram num carrossel envelhecido,
ciranda de velhos que rezam em redor do epitáfio.


_Fabrício de Queiroz Venâncio

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Enterro

Guilherme de Farias - Sertão


As vezes penso que a natureza não sabe o que deve morrer e o que deve viver, como se fosse um plano frio.

Mas não tenho opinião formada sobre tal e duvido que alguém tenha e que não passe pelo artifício da Fé.



Enterro

A terra encena o revés do parto,
suas raízes são invioláveis pelo esquecimento;
sobre sete palmos está a pedra do limo,
em seu redor, a solidão.

Sepultada em corpo frio está a esperança,
soberana dos idos primórdios;
sob sete palmos come o verme da terra,
em seu corpo, a podridão.

Juntas as mãos calejadas sobre o peito,
mortos o engenho e o fruto do trabalho;
entre sete palmos tatuados de aridez
resta à terra a lembrança do último enterro.


_Fabrício de Queiroz Venâncio

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Sob sombras curvadas no chão

Retirantes - Cândido Portinari


"E olha que o sertão é o mundo"



Sob sombras curvadas no chão

Eu vejo esqueletos em fôrma de gente;
e Vejo, tão precisamente quanto a fome;
o pé de gangorra que martiriza o doente:
Não há sonetos que cantem à sua colheita.

Não há estrelas que presenciem a cena
desta tosse seca que sacode pulmões;
os olhos tristes são poços fundos
vazios, vazios, a pedir água:
pinga na testa a resposta esquartejada,
seca o sertão esturricado na mão.

Seca a nascente do rio em bolor,
a terra elimina seu último transpiro;
os gravetos varrem o chão
levantando uma poeira que demora a sentar:
espinhaço curvado ao chão,
boca vermelha do barro.

E a dor sempre a dor a cantar amassando o sangue que agora começa a pingar
Grita a voz escassa dentro do pau oco, gritam os dedos curvados a marejar o chão.


_Fabrício de Queiroz Venâncio & Thiers R.

domingo, 5 de julho de 2009

Cochilo

Os Comedores de Batata - Vicent Van Gogh


Muito pode acontecer no inteiro de um cochilo. Ontem, dormi por uns cinco minutos e tive um sonho onde se passaram duas horas.

Não sei, mas acho esse tipo de coisa fascinante.



Cochilo

O único som a que me presto é o do ar.
Sei que folhas são passadas
(alguém rasga e fala num canto)
que pensamentos, de tão concentrados
produzem som.

É verde o quadro negro de números,
a frente são feições apáticas, noturnas
que não sabem se oram pelo dia seguinte
ou pela cama quente de cada dia - um presépio.

Um céu negro - lá fora
reclama por minha atenção.

Os ansiosos cochicham
os silenciosos dormem.
Eu, que sou este véu
estes vermes que rastejam,
sendo tudo num grão de areia,
sendo pouco enquanto mar.

Mas, não sendo maior que qualquer canto
ou mais que esta vertigem que me engole,
o olhar esnobe, a bexiga cheia.
No abismo, sou devaneio - incoerência,
um sonho sonhando em ser acordado,
nesta noite que não passa.


_Fabrício de Queiroz Venâncio

sábado, 30 de maio de 2009

Gota

A tentação de Santo Antônio - Salvador Dalí


Um poema feito em parceria com meu amigo e poeta Lucas Matos, visitem seu blog (ao lado) e confiram a qualidade dos seus versos.



Gota

Não há terra sob este beiral,
não há sementes para o plantio.
Do animal, ficou o esqueleto,
da estrada, sobrou o pó.

Da fenda o leito observa,
seco rio, dura estrada
arada a terra se partiu
e de uma semente fez-se o plantio.

Há algo entre o fosso e o poço
e não é o frio de uma senzala
nem o odor do fio da navalha:
é um ponto verde insurgente.

E deste único ponto
o solo se faz úmido;
fertilizado, ainda há esperança:
pode do broto surgir o matagal.

Afinal,
toda árvore um dia foi o sonho duma semente.


Fabrício de Queiroz Venâncio & Lucas Matos

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Enquanto espero

O Sonho de Jacob - Marc Chagall


É difícil ser um estudante de ciências e conviver com os outros ao mesmo tempo. Queremos equacionar as relações, fazer levantamento de dados e, quando nos damos conta, depois de pesar prós e contras, percebe-se que esquecemos o sentimento.

Estava olhando e, de modo geral, os poemas deste blog tratam em sua maioria da solidão ou da saudade... Também me impressiono muito com os poemas que carregam essa temática. Mas só digo isso porque é outra coisa que estou tentando entender: as minhas inspirações. Acho bonito os que dizem que olham a chuva e escrevem sobre ela, olham o mar e sentem suas ondas... Na maioria das vezes estes entes carregam a temática da solidão e da saudade em suas águas.

Veja, não acho que minhas linhas sejam um reflexo exato de mim, sou bastante feliz! A idéia que defendo (tenho que defender alguma) é que cada um sente-se bem escrevendo sobre determinado tema e que este tema pode ser alterado no decorrer da vida, como se o poema fosse um despejo reconfortante.

Esses versos pretendem tratar de uma saudade não letárgica.



Enquanto espero

Saudade e pele tenho como companhia,
mas tenho também a lembrança
da forma do corpo passeando,
do cheiro que está em todo ar.

O tempo passa em letargia - inexpresso.
Pressionei o forro do sentimento
e quero me deitar, sozinho:
sonhar a noite inteira com teus lábios.

O aroma no lençol não deixa dormir,
tudo que toco é seu,
parede, travesseiro... Meu tato:
arranho-me por inteiro.

Há uma assinatura em cada foto,
estou calado, arrependido e cansado;
meus pés estão fora da cama,
meu corpo está frio e não posso te abraçar.

Agora, um fósforo me traz a lembrança:
morro e não estou em seu colo.


_Fabrício de Queiroz Venâncio

terça-feira, 5 de maio de 2009

Como caem as pétalas

Nenúfares - Claude Monet


Depois é que conseguimos perceber o quanto era belo aquilo que não apreciamos.



Como caem as pétalas

As flores já murcharam em meu jardim;
Copo-de-leite cedeu à brisa
matutina invernal, penderam
Do cravo ao jasmim.

Girassóis já não brilharão
sob a luz da lua,
Duendes já não esconderão seus potes de ouro
nos findos arco-íris sobre a grama.

Somente a estranha flor permanece de pé
Desafiando este tempo glacial,
Sofrendo e soando sob estes beirais;
Já pálida, esquece-se da fraqueza das pernas.

Transpiram as janelas: faz frio lá fora.
No inverno, a sorte não afunda sementes.
Onde não posso volver a terra com uma colher,
E não posso livrar minhas flores da morte.


_Fabrício de Queiroz Venâncio

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Indulgência

A Primeira Bailarina - Edgar Degas


A antiga Santa Igreja já cobrou a redenção de muitos. O que será que acontecia quando morriam?

Dançavam como os primeiros que atingiam os céus ou choravam por acreditarem falsamente no inferno?

Ou só havia escuridão?



Indulgência

O relógio é um troféu na parede
não percebo o sangue no chão.
O coração de pedra não avisa o quão estou só,
meus pés, secos, anseiam pelo calor;
o corpo frio, emborcado, então me esquece.

Meu sorriso é amarelo,
minhas palavras estão em combustão,
não sou diálogo nem Verbo,
Não soletro e nem refaço
e minha mão já não acaricia.

Chora, criança tola:
a culpa da ignorância é paga pelos dias,
tuas mãos são o chacal
e o tempo a tua gangorra.

E continua duvidando,
cria o limo sob teus pés,
resseca a estática em teus ossos,
empala a mente com tuas lágrimas.

Pensa que sabe
e deságua em tua ignorância:
criança, nem todo verso tem rima,
nem toda canção fala de amor.


_Fabrício de Queiroz Venâncio

sábado, 11 de abril de 2009

Sereno

Impressão, Nascer do Sol - Claude Monet


As vezes é triste esperar o dia passar. Esperamos a noite em expectativa e nos agarramos ao fio de esperança da chegada do lençol noturno. Enquanto passa o tempo persistimos em receber o abraço da solidão, que tomamos como companhia.



Sereno

Ainda é dia na solidão do verso
solicito o doce colo da caveira

Desbotadas estão as minhas pêras
que secas lascaram-se na pedra.

É noite na vastidão das palavras
olho o céu no consolo tumular

Caído, aguardo no silêncio
do meu rosto machucado.


_Fabrício de Queiroz Venâncio

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Fim de festa

A Mulher Bêbada - Jan Steen


Não, não estou com preguiça de escrever. Ao menos não é preguiça, é a letargia que vem depois de uma crise ou de um fim.



Fim de festa

Odor de tabaco no ar e nos cantos;
o cigarro apagado, o cinzeiro emborcado.
Não é fim de Quaresma, ou São João;

no chão, o esperma:
corpos dormentes do cansaço.
Eu, em algum vão embriagado,
troco tudo, erro paredes.

Esqueço, é fim de festa.


_Fabrício de Queiroz Venâncio

terça-feira, 24 de março de 2009

Sujo

Satã Observa o Amor de Adão e Eva - Willian Blake


Antes de começar, tenho que fazer notar minha tristeza pelo ocorrido no Sábado 21, o incêndio no Instituto de Química da UFBA, onde muito material e pesquisa foram perdidos mas, felizmente, nenhuma vida.

...

Estranho como as coisas acontecem e parece que não aproveitamos.

Costumo dizer que não somos nada além de "lembranças e vontades" (frase adaptada de um poema de Rafiki). Sinto-me estranho quando lamento mais pelo que lembro do que quando estou vivendo aquele momento, ou me alegro demais por algo que depois já não vale a pena. Não sei se a solução está em "aproveitar o momento".

Somos corruptos ou passíveis de, ou melhor, somos passíveis de tudo, grande livre arbítrio. Contudo, somos profissionais "em pôr a culpa" e esquecemos que somos carne e defeito, lembrança e vontade.

O mundo não tem culpa de nossa passividade, ele se aproveita dela.



Sujo

Mas eu só preciso de um pouco de barro
e um garimpo.
Minha boca já estava cansada das vaginas,
meu pênis arranhado pelas vaginas.

Então, fiz um homem e lhe dei uma mulher.
Ao homem chamei Adão e a mulher Eva,
dei-lhes um jardim para comer
e, de pau e boca cansados, fui assistir a criação.


_Fabrício de Queiroz Venâncio

segunda-feira, 16 de março de 2009

Paisagem

Campo de Trigo com Corvos - Vicent Van Gogh


Esse é outro poema que escrevi junto com Max. Particularmente acredito que esse é o melhor dos que foram frutos de uma parceria.

Fala sobre o que se abandona, sobre o que é seco e desolado.



Paisagem
"Somente a ovelha negra fica impune / Enquanto o bom pastor toca a sua flauta" (Luís Antonio Cajazeira Ramos)

Há um cacto morto na linha do horizonte
Esta terra, de não sei onde, já não é verde.
Estes rios secos sem inverno nem utilidade
Fornecem a imagem tal qual a de um deserto.

Andarilho dos sonhos partidos, cansados
Caminha em busca de sua musa Felicidade.
Com todas as suas verdades negadas
Segue fantasma, segue enfermo, coitado.

Água: só a lembrança do poço vazio
Sombra: só a das rachaduras
Vida: só a do aroma da semente murcha
Alegria: não aqui, junto ao estio.

No caminho acha um pasto, bonito pasto
Onde sós ovelhas negras residem o sonho pastoril.


_Fabrício de Queiroz Venâncio & Max da Fonseca

quinta-feira, 5 de março de 2009

O Mandamento do Prazer

Na Luxúria, Preste Atenção - Jan Steen


Texto antigo mas com referências fortes... Acho que ainda vale a pena pelo questionamento comum a quem observa a imagem e lê o poema: "até onde podemos nos intregar a nós mesmos?"



O Mandamento do Prazer

A respiração arfante é a evidência,
o medo fará a sua história.
Procuro rosas de olhos fechados
manejo fatos a deriva
do meu prazer.

Por que diria não à sensação?
(ao apego material)
Se do meu corpo faço flatulências
e tenho o púrpura como símbolo.
Por que diria não à voz provocante?
Se do seio arfante, ao sexo ateu
fazem parte o meu prazer.

Juntemo-nos na jogatina,
no vício ilimitado
ou na galhardia dos gritos roucos.
Vamos dançar em volta do mundo
(sons desconexos que não se podem compreender)
andar descalço, nos deixar contaminar.

Vamos cair de joelhos perante a luxúria,
adorar a imagem da decadência,
seguir com a nossa linhagem
(de forma vil, precipitada)
para em um grito, na garganta cortada
de corpo, em alma;
tornar sublime a arte do prazer.

Vamos preencher as lacunas do ócio,
construir a confraternização do pecado e da agonia,
escrever o código da imoralidade;
negar o céu, cuspir ao inferno,
e com aquele sobre este triunfar.

Percebam a hora do coração acelerado
(o perfeito momento do vislumbre).
O sábio que é sábio se entrega,
faz do prazer uma eterna donzela:
que desabrocha por todos os dias,
que faz vencer por todas as horas.

Salve o intuito do Prazer,
diz o Mandamento.


_Fabrício de Queiroz Venâncio

domingo, 22 de fevereiro de 2009

Idades

John Henry Fuseli - Silêncio


A minha idade é pouca.

Contudo, freqüentemente me pego perguntando se meu tempo já passou, se sou o grande azarado desta era, mas sei que existem outros por aí e, como costumo dizer, ser diferente está moda... Então, afasto essa idéia. Muitas vezes me divirto e a utilizo como inspiração.

Esse poema tem duas raízes: a primeira está nesse pensamento de "rapaz afastado"; a segunda nas minhas leituras do poeta Ruy Espinheira Filho, um dos melhores que o país tem vivo.

Antes do poema, gostaria de lembrar que este blog tem uma proposta fixa e não pretende fugir dela, como a relação entre a imagem e o poema. Não vou revelar tudo, os mais curiosos podem se divertir tentando encontrar as relações existentes entre cada uma das minhas postagens.

Agradecimentos aos poucos leitores.



Idades

O silêncio está enferrujado na dobradiça.
Atrás da porta repousa o tempo,
na cabeceira está o pó e no pó
repousam minhas peças velhas.

O terço foi atacado pelas feras,
a cruz tem a ferrugem da descrença;
a santa imagem repousa só
e seus pés estão descalços.

No chão o retrato das minhas eras,
o cabresto que me atém ao luar.
Junto à janela a marca do suor,
a lembrança do eco de passos no vitral.

As traças me fazem lembrar a vida,
os ratos me causam o comichão.
Eu, não sou mais que uma saudade
carregada por um vento já cansado;

um vento farto de mim.


_Fabrício de Queiroz Venâncio

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Selo

Mona Lisa - Leonardo Da Vinci


Este poema é uma homenagem para quem me fez dedicou um "selinho": uma nova forma de os usuários de blog prestarem homenagens aos seus leitores e/ou aos blogs que acompanham. Como, pelo modo ao qual escolhi conduzir este blog, não poderia postar um "selinho", fiz um poema e espero que seja feliz em transmitir minha gratidão, mesmo sendo versos de saudade em um quarto escuro.

A imagem é tão famosa quanto um selo é comum e o quanto as cartas, as fotos, os diários, etc., nos fazem lembrar do passado.



Selo

Para Willa Albuquerque


Estava na carta, no blog,
na caixa de correio do lar.
Estava em minhas mãos,
em teu sorriso perdido.

As fotos testemunhavam o silêncio,
(a ponta amassada e o cigarro apagado).
Em mãos, o selo tremia,
borrado de lágrimas e de saudade.

A tinta no papel é velha,
as pontuações marcam a essência.
O telefone toca e penso:
- Será que é ela?

Toda saudade nos faz de tonto:
apostamos no impossível,
sorrimos às pequenas coisas;
quando lambem o selo,
quando chega a carta...


_Fabrício de Queiroz Venâncio

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Caveira com Cigarro Aceso - Vicent Van Gogh


...





Lembro do gosto do xarope,
da pele de mação murcha.

Penso que ainda gosto do amargo,
sendo secos os sulcos em minha pele.

Do outro lado, a gia canta;
de cá, alguém sorri.

Esperança vou e volto - asfalto;
percebo que estou sozinho.


_Fabrício de Queiroz Venâncio

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

A Casa dos Mortos

Dostoiévski - Vassilj Grigorovic Perov

Quantas vezes tentamos ficar só e notamos não ser possível? Quando isso se repete, sentimos uma desagradável sensação de sufoco e imploramos para que a Senhora Solidão tenha um pouco de piedade.

As vezes fazemos uma leitura e despertamos para algo que intrinsecamente já nos pertencia. Agora lembro de uma frase do Richard Bach, em Ilusões: “aprender é somente lembrar do que já sabíamos”.


Mas não é a Richard Bach que vai esse texto, mas a Fiódor Dostoievski e ao seu livro Recordações da Casa dos Mortos, onde ele narra sua experiência como preso político numa prisão na Sibéria.

A um monstro da literatura universal que permanece.



A Casa dos Mortos
"... o suplício inenarrável é não se poder estar sozinho."
Dostoiévski


É simples o vôo da pena
Cujo peso não pede influência
Em que torta e leve
Consegue pousar macia
Como lira a cantar.

O peso é o crime
O pouso a penitência
que se deve pagar
Ao inverno cortante
Onde companheira se faz de cela
De cobertor se faz o corpo.

Pela manhã ouçam o canto
cantiga forçada de trabalho;
Pela noite me venham copeques
de serviço extra e mão em calejo.

O copeque se faz em vodca
A espera do dia a se embriagar
gozo, apronto
Faz-se do crime o verso
Da bebida o justo da pena.

Vem-se novo dia
(novos meses de serviço)
Só se resta esperar
Um novo dia de vodca
Um novo dia ao desperdício.
Aguardar as desculpas da solidão.

Pois que sou a pena e o vôo
Tenho o nome de liberdade
E comigo sempre estará
Quem direito tem a ser solitário.

O detento não deita em meu colo
Pois quando fica só?
Aprenda a ser fiador
Trabalhe com a vela e o sapato
(refugie-se na embriaguez)
E faça de mim a luz no final do corredor.

_Fabrício de Queiroz Venâncio

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Gangorra

Eu e a aldeia - Marc Chagall


Depois dos sinceros desejos de bem estar e esperança, um pouco da retórica da contradição.



Gangorra

Não me preocupo com quem ocupa os lados,
balanço e caio conforme critérios
físicos conceituados.
Posso ter medidas de velocidade,
Centro de massa a calcular,
momentos de inércia, rotação.
Brincar com duas crianças:
ser estática.

Posso arrancar sorrisos dos corações maternos,
empalar o verbo ou lhe fazer um ânus.
Conduzo ao prazer do vento no rosto,
sou frio e desgostoso - andrógeno:
sou calada e taciturna,
sarcástico e mau-humorado,
Sou humano, objeto inanimado.

Senta no meu colo, criança:
escolhe, tenho dois pra ti.
Sou o pedófilo de uma nação,
sou religião e ceticismo;
mordo a bunda do meu povo,
mastigo e cuspo os seus colhões.

Sou fiel até o parto,
até segundos antes do choro;
e quando parto já não sou útil
e quando fútil sou inconsciência
e quando vivo, sobrevivo.
Enquanto sou pênis, coração;
enquanto livre, reflexo.

Cedi minhas barras ao Oxigênio,
minha madeira aos cupins;
agora, são todos os sorrisos amarelos.
O bebê é de metal, o garoto,
ao qual eu insistia em aparecer,
é magricela e tem fome.
Já não levanto e me desfaço:
apodreci.

Procuro meu espírito pelos cantos,
já esqueci a minha canção:
bela na boca das crianças,
eterna nos olhos da velhice.
Agora sou solidão embalsamada,
testículo infértil e murcho,
já não sou verde ou maduro:
apodreci, e comigo veio o mundo.


_Fabrício de Queiroz Venâncio